04 de novembro de 2013 Tópicos: Assuntos Legislativos

Entrevista: Política institucional ‘tímida’ e condições precárias dificultam atendimento a mulheres vítimas de violência

A Lei Maria da Penha é um importante marco legislativo na proteção à mulher vítima de violência doméstica e familiar, mas depende ainda de avanços na política institucional e mudança estrutural e de mentalidade no Poder Judiciário para a efetivação plena de suas normas no País. A avaliação é da professora Cristiane Brandão, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que coordena a pesquisa “Violências Contra a Mulher e as Práticas Institucionais“, promovida pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) no âmbito do programa Pensando o Direito, da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (SAL/MJ).

Segundo a pesquisadora, existem problemas tanto nos Juizados da Violência Doméstica e Familiar (JVDFMs) como também na Defensoria Pública para fazer o correto atendimento das mulheres vítimas de violência, com maior dedicação, engajamento e conhecimento da dinâmica dessa violência e da forma de atenção à vítima.

“Parece tímida ainda uma política institucional disseminada e preocupada com uma mudança de estrutura e de mentalidade do Poder Judiciário. Sem desconsiderar a louvável atuação de defensores engajados, merece registro a precariedade das condições de atendimento, a ausência de um primeiro atendimento realizado pelo profissional capacitado, a dificuldade da vítima em ter uma escuta individualizada e prévia à audiência.”

A professora Brandão esteve na Secretaria de Assuntos Legislativos, em Brasília, para apresentar o relatório parcial da pesquisa que coordena. Aproveitamos a oportunidade para entrevistá-la. Confira:

Qual o retrato hoje do acesso da mulher vítima de violência à Justiça? Qual o impacto da Lei Maria da Penha nesse processo?

A Lei Maria da Penha é considerada por muitos como um marco legislativo na proteção à mulher vítima de violência doméstica e familiar, seja pela ampla definição de violência – a qual engloba a violência física, moral, sexual, patrimonial e psicológica – seja pela previsão das medidas protetivas de urgência ou, ainda, pela criação dos Juizados especializados. No entanto, para a efetivação plena das normas deste texto legal ainda temos um longo caminho a percorrer, pois o retrato hoje demonstra problemas antigos, atinentes, de uma forma mais genérica, a históricos entraves ao acesso à Justiça no Brasil, tais como a escassez de recursos humanos para o processamento das demandas judiciais, falta de estrutura física que comporte os profissionais e as partes,  linguagem jurídica inacessível a grande parte da população, altos custos que o processo envolve etc.

Mais especificamente quanto aos Juizados da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (JVDFM), também permanecem recorrentes problemas, dentre outros, relacionados à falta destes Juizados na grande memória dos municípios brasileiros; à rotina/estrutura de atendimento a mais de cinco mil processos/mês (como é o caso da capital do Rio de Janeiro), dificultando uma escuta sensível com atendimento profissional humanizado; à inviabilidade de aplicação/fiscalização do cumprimento das medidas protetivas. Outrossim, associam-se fatores ligados a uma cultura social autorizadora da violência e, sobretudo, da violência contra a mulher, que impede, até mesmo muitas vezes, a percepção dessa agressão como crime e, consequentemente, da autopercepção como  vítima. Não menos importante, inclui-se uma cultura jurídica vinculada a alores tradicionais, que, não raro, visualiza no empoderamento da mulher uma ameaça ao padrão conservador de ‘família’, bem como resiste a olhar a violência contra a mulher como violação a direitos humanos, demonstrando, assim, baixa preocupação em inserior de fato o Judiciário numa rede de proteção legal.

A  pesquisa  revela  que  mais  de  90%  das  mulheres  que  procuraram  a  Justiça  foram assistidas  pela  Defensoria  Pública  –  uma  minoria  fez  uso  de  advogados  particulares.  As defensorias  estão  equipadas  adequadamente  para  atender  a  essa  demanda? 

Os fatores que dificultam um equipamento adequado da Defensoria como um todo se refletem igualmente nos JVDFMs. Aqui, todavia,  se mostra maior exigência por, pelo menos, dois motivos: primeiro, o atendimento deve ser especializado e multidisciplinar, atentando para a complexidade da violência, além de ser integrado à rede de proteção – o que demanda maior dedicação, engajamento e conhecimento aprofundado de toda a dinânmica desta violência e da forma de atenção à vítima; o segundo motivo reside justamente nessa defesa da mulher, inovação trazida pela Lei Maria da Penha, que passou a garantir a assistência judiciária pela Defensoria às vítimas de crimes, não só a seus  autores. Desse  modo, há a necessidade de dois defensores em cada Juizado – um para o agressor, outro para a vítima – com toda uma preparação suprajurídica, articulação com órgãos da Rede, atenção às especificidades da violência doméstica e familiar, sensibilidade para o encaminhamento das decisões e humanidade nos atendimentos.

Quais os principais problemas enfrentados hoje pelas Defensorias Públicas no cumprimento do  seu  papel  institucional  de  oferecer  assistências  às  mulheres  vítimas  de  violência? 

Realmente, cabe à Defensoria “abraçar a causa”. Parece tímida ainda uma política institucional disseminada e preocupada com uma mudança de estrutura e de mentalidade do Poder Judiciário. Sem desconsiderar a louvável atuação de defensores engajados, merece registro a precariedade das condições de atendimento, a ausência de um primeiro atendimento realizado pelo profissional capacitado, a dificuldade da vítima em ter uma escuta individualizada e prévia à audiência.

Qual a avaliação do trabalho dos defensores públicos pelas mulheres vítimas de violência que  procuram  a  Justiça? 

Nossa pesquisa vem coletando dados de seis Estados brasileiros (Pará, Alagoas, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul), representando as cinco regiões de nosso País. A partir dos questionários aplicados às usuárias dos JVDFMs, foi possível verificar que 5% consideraram a atuação do Defensor Público muito boa e 27% atribuíram a conotação “boa”, logo temos em torno de 32% que avaliaram positivamente. No entanto, 33% entenderam que a atuação foi regular, ruim ou péssima. Ademais, 35% não souberam avaliar por se tratar de primeiro atendimento. Conjugando estes dados com outro extraído da pergunta “único  defensor atuando no processo?”, em que mais da metade afirmou que “não” ou que “não sabia responder”, concluímos que, quer seja pela falta de informação satisfatória ou de identificação de seu verdadeiro defensor, quer seja pelo atendimento precário, a Defensoria Pública não vem criando o elo almejado pelo movimento feminista, quando se vislumbrou, nos artigos 27 e 28 da Lei Maria da Penha, a garantia de “acesso aos serviços de Defensoria Pública ou de Assistência Judiciária Gratuita, nos termos da lei, em sede policial e judicial, mediante atendimento específico e humanizado”.

Como a pesquisa “Violências Contra a Mulher e as Práticas Institucionais” pode  contribuir para  facilitar  o  acesso  à  Justiça  e  melhorar  o  trabalho  das  defensorias? 

A pesquisa pode contribuir a partir da contribuição dos próprios operadores do Direito e das vítimas. Com a identificação dos obstáculos, podemos, em conjunto, propor soluções através de medidas legislativas e administrativas que venham repercutir a favor de todos. Com a colaboração dos entrevistados e com a observação participativa dos analistas de nossa equipe, será possível extrair os dados necessários para, após tratamento cauteloso, oferecer ao Ministério da Justiça parecer técnico com elementos para projetos de lei, de resoluções e outros diplomas que imprimam qualidade legislativa e transformações compassadas com a realidade investigada na esteira das expectativas sociais.

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8 comentários em “Conheça o projeto Pensando o Direito”

  1. Joseane Rocha disse:
    Quando haverá outra edição do evento?
    Os temas abordados na edição anterior foram muito estimulantes para o investimento em tecnologia da informação e comunicação.
    Joseane Rocha,
    http://www.educamundo.com.br
  2. duda disse:
    Adorei gostaria muito de participar
    De projeto
  3. Thelma Regina da Costa Nunes disse:
    Adorei,gostaria muito de participar desse participar desse projeto.
  4. Maria Sueli Rodrigues de Sousa disse:
    A página do ipea não abre desde ontem que tento. Vcs sabem informar o que está ocorrendo?
    1. Pensando o Direito disse:
      Olá, a página está com um problema técnico. Iremos prorrogar as inscrições.
  5. Antônio Menezes Júnior disse:
    Pesquisa super relevante, muito bem estruturada e indica conclusões interessantes, algumas já conhecidas no cotidiano de muitos que trabalham no ramo, e a algumas questões ainda pouco decifradas. Tive o privilégio de conhecer ao vivo, um conjunto de exposições dos próprios autores, meses atrás. Um extraordinário trabalho e produção de conhecimento. Atrevo-me apenas a sugerir que a pergunta inicial seja diferente da atual, para o futuro, e para reflexão. A pergunta inicial enseja uma relação direta entre alcances de um processo de regularização e os instrumentos jurídico-urbanísticos disponíveis, mas e as pessoas, e o conhecimento em torno deles ??? É sabido que os instrumentos em si não são autônomos, precisam ser conhecidos, discutidos, e sua implementação precisa ser ajustada a cada realidade. Portanto, melhor que a pergunta sugira o que é preciso para os instrumentos jurídico-urbanísticos tenham efetividade na realidade dos municípios.
  6. Roberto disse:
    Esse tipo de evento é realmente muito importante. alem de ser contra a corrupção, promove o desenvolvimento de idéias inovadoras.
    Aguardando pelo próximo evento

    Roberto
    http://metodologiaagil.com

  7. Humberto disse:
    Ótima atitude!!

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