Um ‘think tank’ parceiro dos debates
Os dois debates públicos promovidos pelo Ministério da Justiça ganharam minuciosas análises semanais de um think tank dedicado a temas que envolvem direito e tecnologia. Os relatórios são do Internet Lab, um centro de pesquisa independente voltado a subsidiar políticas públicas, que pretende fazer uma cartografia dos argumentos para guiar os participantes e o próprio governo.
O projeto Pensando o Direito conversou com o diretor da organização, Francisco Cruz. Além de pesquisador e advogado, Francisco é mestre em filosofia e coordenador do Núcleo de Direito, Internet e Sociedade da USP.
PENSANDO O DIREITO: O InternetLab produziu relatórios semanais sobre o debate. Qual o interesse em acompanhar as discussões de perto? Qual o papel do Internet Lab no processo?
Francisco Cruz: Com o “InternetLab Reporta”, nosso projeto de acompanhamento do debate público sobre a regulamentação do Marco Civil da Internet, pretendemos, em primeiro lugar, informar o público sobre o que está sendo discutido, ampliando o número de envolvidos no debate; segundo. aprofundar e qualificar discussões polêmicas ou difíceis; e terceiro, deixar o processo participativo sempre na cabeça de todos e na agenda de discussões.
O interesse é simples: acreditamos que esse debate é crucial para o futuro da Internet no Brasil e queremos que a experiência participativa dê certo, no sentido de levantar argumentos e informar o Executivo para a construção de uma regulação equilibrada e que atinja as expectativas técnicas e de proteção do interesse público.
O InternetLab não está opinando institucionalmente de que modo o decreto deve ser. Mas está incentivando seus pesquisadores a participar do debate de forma individual. A ideia é privilegiar a dinâmica de um debate público transparente e a pluralidade acadêmica. Podemos discordar uns dos outros – e não há problema nisso.
PPD: Você disse uma vez que o debate sobre a regulamentação do Marco Civil deve ser o mais amplo possível. Mas há questões muitos técnicas. A quem cabe fazer essa tradução?
FC: Em primeiro lugar, o governo, que gerencia o debate, precisa se esforçar para oferecer as condições adequadas para que ele aconteça. Isso significa fornecer informações consistentes e concisas para a compreensão mínima da plataforma de participação e das questões que estão em discussão. Isso não significa já “dar as respostas”, mas sim orientar o que se quer tirar daquela discussão.
Mas não é só o governo que detém essa responsabilidade de “tradução”. As organizações da sociedade civil também devem mobilizar a população a partir de informações simples, mas corretas, especialmente as entidades orientadas para a defesa do interesse público ou de direitos coletivos.
Mas devo dizer também que, nesse ponto, a academia tem um papel especial. Mais do que comprar as brigas na “linha de frente” dos conflitos, os pesquisadores envolvidos e atentos ao debate podem contribuir muito, explicando o que está em jogo por detrás das questões técnicas.
PPD: Além do Internet Lab, outras organizações da sociedade civil se envolveram amplamente com os dois debates fomentados pelo Ministério da Justiça. Por que e como o governo deve envolvê-las? E quanto a empresas da área?
FC: O governo deve tentar envolver todos os que estão interessados e abertos a debater o modo como o Marco Civil da Internet deve ser regulado: cidadãos, empresas e organizações. Envolver significa criar e manter uma plataforma de fácil uso para todos, considerando as diferenças que existem na participação de um cidadão e de uma grande empresa, por exemplo.
Além disso, o governo tem a responsabilidade de divulgar o debate, não deixando que ele caia no esquecimento. Debater com os interessados significa justificar as decisões tomadas com os argumentos pertinentes, explicando a todos os setores o que foi levado em conta para uma resposta negativa ou positiva frente a qualquer demanda. O papel do governo é o da criação e da divulgação do debate, em uma ponta, e o de justificação e da transparência das decisões e dos processos aos participantes, na outra.
PPD: Por que a neutralidade de rede de Internet é um direito se na TV não é?
FC: A neutralidade da rede é uma regra criada para defender a Internet como uma rede aberta e descentralizada. Boa parte do que se valoriza na Internet tem base nessa estrutura: capacidade de inovação e criação de novos serviços, liberdade para navegar e experienciar a Internet em sua totalidade – apenas com limites de velocidade e banda, mas sem veto a esse ou àquele conteúdo ou serviço. É esse tipo de qualidade que a regra da neutralidade de rede visa proteger ao proibir a discriminação de pacotes de dados na rede.
Na TV a história é outra, com outro pano de fundo. A experiência dos telespectadores é justamente de “espectadores”, que observam um conteúdo que nunca foi produzido por eles. São mídias diferentes, com qualidades e defeitos diferentes.
PPD: Além do debate sobre a regulamentação do Marco Civil da Internet, o Ministério da Justiça também está promovendo um outro, sobre a proposta de projeto de lei sobre proteção de dados, um texto que interessa a vários setores da sociedade. Como vocês vêm esse debate?
FC: Essa questão é crucial para a proteção dos cidadãos brasileiros dentro e fora do ambiente digital. Dados pessoais hoje são a base de muitos mercados e podem ter muitas finalidades. Não adianta nada olharmos para o caso Snowden e ficarmos horrorizados com a vigilância em massa praticada em outros países se sequer possuímos um debate sobre coleta e tratamento dos dados pessoais por aqui. Precisamos de limites, de parâmetros e de instrumentos legais que empoderam o cidadão frente ao uso de suas preferências e informações por empresas e pelo governo. É ilusão acharmos que estamos muito protegidos sem a aprovação dessa lei.
PPD: No dia 23 comemoramos um ano da promulgação do Marco Civil. No dia 7, o governo lançou o Humaniza Redes, um programa para garantir direitos humanos na Internet. Como você avalia o atual cenário no país do ponto de vista do direito digital?
FC: O Brasil deu um primeiro passo na proteção de direitos na rede, que é o Marco Civil da Internet. Mas é apenas um primeiro passo. Do lado dos direitos associados ao uso da Internet, privacidade e liberdade de expressão, por exemplo, acredito que precisamos acelerar e adensar o debate sobre a aplicação e a regulamentação do Marco Civil – destacando o papel reservado ao Judiciário para interpretar a nova lei – e especialmente nos esforçar em debater o assunto da proteção dos dados pessoais. Nesse ponto os cidadãos brasileiros ainda estão muito desprotegidos. O #HumanizaRedes, por sua vez, atinge outro lado, o da proteção dos direitos humanos na rede.
De fato, sabemos que violações desses direitos ocorrem o tempo inteiro na Internet, e faz sentido que o governo se esforce em coordenar os canais de enfrentamento das condutas que são consideradas ilícitas no ordenamento brasileiro. A grande questão me parece ser equilibrar esse enfrentamento com a defesa da liberdade de expressão. Esse equilíbrio só é possível se colocamos o projeto e seus resultados em constante debate com a sociedade.
Palavras como empoderamento, limites, liberdade de expressão, etc., são todas ideias extremamente subjetivas que dependem da nossa cultura e ideossincrasias. Acho porém que se formos bem sucedidos nesta regulamentação do Marco Cívil da Internet, apesar de assunto complexo, a experiência poder-nos-á dar knowhow p/ participações sociais em outras regulamentações.
Vamos em frente.