Não sei qual é o eixo adequado para propor esta discussão, mas vamos lá.
O artigo 10º do Marco Civil diz o seguinte:
Art. 10. A guarda e a disponibilização dos registros de conexão e de acesso a aplicações de internet de que trata esta Lei, bem como de dados pessoais e do conteúdo de comunicações privadas, devem atender à preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das partes direta ou indiretamente envolvidas.
(…)
§ 3o O disposto no caput não impede o acesso aos dados cadastrais que informem qualificação pessoal, filiação e endereço, na forma da lei, pelas autoridades administrativas que detenham competência legal para a sua requisição.
Minha preocupação é com a extensão deste parágrafo terceiro. São três pontos:
1. Em que medida a autoridade pode, em seu pedido de acesso, ligar tais dados cadastrais a uma conta ou algum outro dado? Este parágrafo pode permitir que qualquer autoridade de posse de um IP possa pedir à operadora de telecomunicações responsável pela administração do IP o cadastro do usuário que o utilizou, sem crivo judicial. Para atingir as garantias previstas no caput acredito que deve estar claro na regulamentação que estes dados cadastrais só podem ser acessados com a indicação de um nome de usuário ou outra informação pertencente à conta de serviço do usuário de Internet em questão.
2. Que autoridades são essas que podem acessar dados cadastrais? O decreto precisa definir o que entra neste escopo, sob pena de ficar amplo demais. Deve dizer também que o acesso deve estar condicionado à finalidade administrativa da autoridade e à uma justificativa do pedido – afinal de contas são dados de titularidade do usuário de Internet em questão.
3. Qualquer acesso deste tipo a dados cadastrais deve ser informado ao titular dos dados. Isso resguarda o direito dos cidadãos serem informados sobre o uso de seus dados pessoais fornecidos no cadastro para qualquer finalidade diferente do que o consentido (regra inclusive do Marco Civil) – incluindo a finalidade investigativa. Casos de exceção devem estar previstos – e o pedido de exceção, justificado.
É preciso muita cautela nesse ponto. O Brasil tem uma tradição jurídica pouca afeta a controles dos atos de autoridades administrativas. Uma forma de contornamos as raízes autoritárias do direito administrativo brasileiro é exigirmos justificativas para esses pedidos. No caso do parágrafo 3º do artigo 10, a ideia é que a regulamentação não exija somente a “competência legal para sua requisição”, mas também uma justificativa que explicite as razões para tal pedido. Com isso, criamos uma moldura jurídica que diminui as chances de pedidos sem fundamento.
Poderíamos discutir também se esse mesmo raciocínio jurídico poderia ser aplicado ao artigo 15, parágrafo 2º, do Marco Civil.
Revogação de todo o estatudo ou pelo ao menos desta parte.
Somente o judiciário tem essa autoridade.
Em relação a segurança dos dados, temos uma questão muito preocupante. Falam muito do tal poder econômico, mas quem está autorizado a ver esses dados? Pelo texto, qualquer um da esfera administrativa. Até que isso seja de fato esclarecido penso que o Marco Civil é um Cavalo de Troia que dará munição para perseguições de acordo com o momento.
Sobre a sua opinião política de que “as leis de mercado” resolveriam qualquer questão, discordo também. A questão dos planos de Internet móvel que você citou, por exemplo, está recheada por implicações concorrenciais que podem ser lesivas ao consumidor. Alguns princípios de governança precisam ser estabelecidos, inclusive para frear a ação do Estado quando necessário (como, por exemplo, a exigência de ordem judicial para que a Polícia quebre o IP de um usuário).
Em relação a segurança dos dados, devemos e retirar da Lei a obrigatoriedade e só permitir se for feito por Ordem Judicial e de forma bem específica para não dar chance ao vigilantismo de massa, inclusive os dados cadastrais.
“Aqueles que abrem mão da liberdade essencial por um pouco de segurança temporária não merecem nem liberdade nem segurança.
Benjamin Franklin “
“Art. 17-B. A autoridade policial e o Ministério Público terão acesso, exclusivamente, aos dados cadastrais do investigado que informam qualificação pessoal, filiação e endereço, independentemente de autorização judicial, mantidos pela Justiça Eleitoral, pelas empresas telefônicas, pelas instituições financeiras, pelos provedores de internet e pelas administradoras de cartão de crédito. (Incluído pela Lei nº 12.683, de 2012)”.
O regulamento deve explicitar esse entendimento para que não haja risco dessa competência ser atribuída a uma gama maior de autoridades.
“Art. 15. O delegado de polícia e o Ministério Público terão acesso, independentemente de autorização judicial, apenas aos dados cadastrais do investigado que informem exclusivamente a qualificação pessoal, a filiação e o endereço mantidos pela Justiça Eleitoral, empresas telefônicas, instituições financeiras, provedores de internet e administradoras de cartão de crédito”.
Novamente aqui se trata de delegado de polícia e Ministério Público. A regulamentação do Marco Civil precisa explicitar as referências legais que acolhe no art. 10, §3º, caso contrário corre o risco de ser utilizada para ampliar demasiadamente o escopo das autoridades que podem ter acesso a dados cadastrais independentemente de ordem judicial. Defendemos, portanto, que ambas as lei sejam mencionadas expressamente na regulamentação, evitando o risco acima mencionado.
Além disso, a regulamentação deve prever a necessidade de justificativa e observância do princípio da finalidade por parte da autoridade que está fazendo a solicitação (delegado de polícia ou Ministério Público). Nesses casos, a notificação do investigado deve ser a regra, para que possa estar ciente e exercer devidamente os seus direitos ao contraditório e à ampla defesa. Haverá exceções à obrigação de notificação do investigado quanto a lei determinar sigilo ou quando o juiz assim decidir quando se tratar de processo criminal e puder comprometer a investigação.
Considero justificável este acesso quando fundado em inegável fator de interesse público, quando visa, por exemplo, atualização de informações junto ao INSS, Justiça Eleitoral e etc.